19 dezembro 2010

Memórias Marilienses de “Aventuras”: congresso na roça

Depois de um longuíssimo tempo, eis-me aqui com mais uma memória de aventura mariliense. Da primeira para esta dei um grande salto: de 1990 direto para o fim de 1993 – quase no final das aventuras:

Em setembro de 1993 a faculdade organizou uma “excursãozinha” para irmos à IV Jornada Paulista de Biblioteconomia e Documentação e III Encontro de Bibliotecários de Jaboticabal e das Cidades Vizinhas.
 
Último ano da faculdade, quase formada, sentindo-me “A Profissional”, claro que eu queria ir ao evento, a despeito da crise pânico-hipocôndrica que tomava-me na época. Desesperada, eu não queria viajar e correr o risco de ter um ataque cardíaco em pleno congresso, assim, contei a “graninha” que havia recebido da bolsa de iniciação científica e marquei uma consulta em um cardiologista particular – Dr. Sidônio Quaresma, consultório na av. Rio Branco.

Não, não tirei esse nome de um personagem de Lima Barreto. Ele era o cardiologista da amiga da dona do pensionato em que eu morava. Eu sempre prestei atenção (e ainda presto) quando mencionam e indicam nomes de médicos...
 
Assim, sem ter que pedir indicação de médico a ninguém, lá fui eu me consultar pré-viagem com o Dr. Sidônio Quaresma (que por sinal, era um senhorzinho muito “fofo”, com aquele jeito dos bons médicos de antigamente). Claro que ele nada encontrou de errado com meu coração, apenas uma extra-sístole de fundo nervoso, receitando-me um ansiolítico fitoterápico, o qual não tomei por medo de que fizesse mal.

Mesmo não completamente convencida de que meu coração era saudável, parti em viagem com o pessoal da faculdade rumo ao campus da Unesp de Jaboticabal – local do evento.

Lá chegando, nos hospedamos no “Botinão”, ginásio municipal, cujo nome real era Ginásio de Esportes Alberto Bottino, daí o estranho apelido.

Ajeitando meu colchão, senti-me a verdadeira “mochileira” - dormindo no chão com amigas e dezenas de colegas de faculdade (havia alunos de todos os anos do curso e pelo que me lembro, de outras faculdades também) e tomando banho naqueles banheiros de atletas. Aquilo era fantástico!
 
No primeiro dia o ônibus da faculdade nos levou até o campus, que era fora da cidade, porém, no dia seguinte, não tínhamos como ir até lá, pois o “bus” havia ido embora e só voltaria para nos buscar no final do congresso. A cidade era pequena, existindo pouquíssimos ônibus circulares, só nos restando assim, pedir carona nas ruas.

No entanto, antes desse intento, tomamos um confuso e improvisado café da manhã no boteco que ficava atrás do “Botinão”.
 
Eu, preocupadíssima com a suposta fome que sentiria até a hora do almoço, devido ao fraquíssimo desjejum ingerido – um “filãozinho” com manteiga e um copinho de café preto – resmunguei o caminho todo até à avenida marginal aonde pediríamos a carona, incomodando algumas colegas que acharam sem cabimento eu preocupar-me tanto com uma fome que não sabia se iria sentir ou não. Essa era eu, naquele tempo.

E lá fomos nós. Postamo-nos na avenida marginal com os polegares em posição característica e, sem pudor algum, esperávamos por um carro abençoado que, sem medo, preconceito ou sabe-se lá mais o quê, parasse e desse carona para aquele bando de garotas. Não me lembro ao certo em quantas estávamos, mas creio que precisaríamos de uns dois carros.

Finalmente, pouco tempo depois, o abençoado veículo parou e carregou algumas de nós. Fui nessa primeira leva. A motorista era um bela morena de cabelos longos e lisos, e o carro, era algo parecido – senão ele próprio – com um jeep toyota muito velho. A música que tocava no “tape” era Nowhere Fast, tema do filme Ruas de Fogo (que eu amava!) com a maravilhosa Diane Lane!
 
A moça ia diretamente para o campus, pois fazia residência em Medicina Veterinária lá. Sentei-me com outras colegas no banco de trás, e, durante o trajeto, a música altíssima e o vento nos cabelos da linda motorista fizeram surgir na minha mente pensamentos os quais bloqueei imediatamente – tão "bobinha" era esta que escreve este relato - ao extremo de nem ao menos permitir-se sonhar com assuntos tão interessantes e pertinentes!

Sorriam caros leitores, pois tão pertinente e interessante foi o acontecido que lembro-me dele nos detalhes acima descritos após tantos anos!

Pois bem, chegamos à Unesp e passamos o dia lá, assistindo palestras, almoçando no refeitório dos alunos, passeando pelo campus e tirando uma soneca embaixo das árvores sob os olhares curiosos de quem passava – o que fez com que nos perguntássemos se aquele comportamento, num campus de uma universidade pública, em plenos anos 90, era algo realmente assim tão excêntrico!?!
 
Nós achávamos que não. (e eu continuo achando que não).

A noite, andamos pela cidade, comemos lanche no trailer da pracinha, fomos conhecer o “famoso” bar do DA (diretório acadêmico) da Unesp e passeamos num daqueles trenzinhos infantis pelas ruas de Jaboticabal, rindo, cantando, brincando e vivendo, embora eu continuasse preocupada com o meu frágil coração!

Dez./2010

03 outubro 2010

O Nome da Fome

Abaixo, o poema O Nome da Fome, publicado na Antologia Delicatta V - Cronistas, contistas e poetas contemporâneos, Série Esmeralda, de 2010:


O Nome da Fome


Se eu mudar de nome
quem sabe engano a fome
que aqui dentro dorme
E às vezes desperta
em sinal de alerta


Se eu mudar de nome
quem sabe adorne
com nova moldura
Essa fome que é dura
e sentida sem cura


Essa fome tem nome
Essa fome não dorme
Essa fome não morre.


O nome da fome é sentença puída
é verdade desnuda
é imagem torcida.


Mas não ouse do alto da grua crua
mudar o nome da fome.


O seu nome corrói o cobalto
e atira para o alto
os retalhos e o pó


O nome da fome consome
as entranhas,
cavando buracos sem dó!


O nome da fome é tabu
é saci no bambu
é quase vodu!


O nome da fome?
É segredo...



jul./2008

03 agosto 2010

O beijo da loba

Conheci-a em circunstâncias propiciadas pela modernidade – sim, a internet. Um e-mail burocrático por mim enviado, seguido de intuição e curiosidade recíproca, e uma ousadia que eu não sabia possuir - facilitaram ao destino, o nosso encontro.

Entre jantares e cinemas, fui conhecendo-a. Ela era uma loba. De uma espécie inédita para mim - linda, inteligente, gentil e carinhosa.

Inacreditavelmente, um dia, cedendo à minha nova ousadia – pedir despudoradamente para ser convidada à uma taça de vinho -  vi-me em sua toca. Visto o perigo da empreitada, fui por ela advertida de antemão que eu correria riscos. Como a vontade de precipitar-me à situação tomava-me, optei por corrê-los.

Conduzida ora gentilmente, ora no limiar do seu instinto selvagem reprimido soltar-se dos grilhões da civilidade, fui levada às entranhas da sua toca, onde o abate seria inevitável.

Deitada em seu leito, sob seu corpo vigoroso, não havia escapatória. Mas, eis que, para minha surpresa, deu-me ela a opção de escolher ser devorada de imediato ou em outro dia à minha escolha. Apesar de ansiar ser comida naquele instante, o medo, talvez de ser uma “chapeuzinho” precipitada, fez-me optar por o sê-lo na próxima visita.

Acenando a cabeça, ela aceitou, tranquila, e, aproximando sua boca da minha, deu-me o mais concupiscente beijo que jamais provei.

E assim descobri que não se sai imune da toca de uma loba.


26/04/10

27 maio 2010

Homenagem ao Chocolate nosso de cada dia...

Abaixo, posto o poema Chocolática - uma homenagem ao nosso amado chocolate, que adoça a vida de muitos pelo mundo afora - quiçá, pelo universo!

Pensei primeiramente, em postar o poema no blog do meu heterônimo (sim, eu tenho um!) que é quem escreve textos nonsense, sem noção, etc. e tal. No entanto, como o chocolate é algo muito amado neste planeta por pessoas de todas as idades, credos e culturas, existindo entre esse mundaréu de gente,  escritores "eles mesmos", heterônimos, homônimos, hormônios, polinômios e coisa que o valha, resolvi que a escritora "eu mesma" deveria assumi-lo e não meu heterônimo.

Aqui vai ele:

Chocolática

Do cacau, o chocolate.
Do amor, doçura que exala
um coração que bate
um beijo que estala.
Mãos que se unem,
e por afinidades se re-únem

Chocolates na infância
na ânsia dos quinze
e aos pés da esfinge.

Come tudo e não finge!
Nada te restringe!

Seu querer em potência varia
Mas  ao leite ou amargo,
doce ou salgado,
no amor é mania!


Dez./08

O Café

Numa daquelas manhãs de outono, de sol embaçado e quente, porém ameno, tive um deja vu.  Um deja vu temporal – se é que posso chamá-lo assim sem cair num pleonasmo daqueles! Parecia, ao sair à rua, que eu estava em outro tempo, numa outra época. Embora eu fosse o mesmo, o tempo era outro. Senti-me há uns vinte e cinco anos. Quase me vi, com a camiseta do ginásio e a mochila emborrachada e colorida apoiada em apenas um dos ombros, atravessando a rua à minha frente.

Sentei-me em um café, na calçada, para conferir uns relatórios – estava a caminho do trabalho após uma visita ao médico e, como ainda era cedo, eu tinha alguns minutos para saborear aquela atmosfera. Feliz, por não ter doença alguma – eram apenas bobagens aquelas sensações no coração,   eu em nada pensava, apenas sentia. Enquanto tomava o café, dei uma rápida organizada na pasta que carregava, conferi alguns dados no meu moderníssimo celular/computador e fixei, em seguida, minha atenção àquele tempo, que de passagem por este tempo, estava.

Terminei o capuccino, que por sinal estava delicioso – cremoso, adoçado no ponto e muito, muito leve. Recolhi “minhas coisas”, respirei fundo, levantei com certa relutância, e saí, já saudoso daquele momento, e daquele dia, que aos poucos desvaneceriam na turba do tempo.


29/04/10

16 março 2010

Antoine (Final!)

Antoine era sóbrio, era um homem muito sóbrio. Sua sobriedade atingia sua vida, porém não os seus atos. Ela estava guardada, na verdade, trancafiada, para que não o atrapalhasse na sua luta, pois ela o atrapalharia: Ah sim, atrapalharia! E muito! Assim ele pensava.

Antoine sentia dores como quem come o mundo, ou à medida que comia o mundo, ou melhor ainda, à medida que se sentia comido pelo mundo. Mas ele sabia que algo o salvaria, ele aguardava o seu arrebatamento por aquilo ao qual ele esperava há muito tempo. Ele estava cansado, mas a vã batalha não podia ser abandonada...jamais!

Antoine, durante toda a sua vida ansiara por amor. Mas, mais do que só amor, ele ansiava por cumplicidade. Com Camila e Túlio, finalmente, encontrara o que tanto procurava. Embora nada fosse realmente suficiente, pois Antoine teoricamente não conhecia o limite das coisas e dos sentimentos; tudo caminhava como grande parte dos seus desejos, sendo que febrilmente tudo se concatenava, e o êxtase desencadeado era pleno, puro e real.

Ah! Os dias de glória!!!! Quantos eles foram! Quantas e quantas vezes Antoine deleitou-se e oniricamente se completou na companhia dos seus dois amigos! Camila era o mistério, era o desconhecido que se revelava aos poucos; e que o atraía pela sabida impossibilidade do seu desvelamento total. Túlio era o conhecimento partilhado, o amor e a “philia”(2).

Os gloriosos dias voavam, tantas eram as sensações, que não mais sentia a passagem deles...todos eram um único e deslumbrante dia! Dias de amor, dias de vida, que deslumbravam conscientemente o pequeno Antoine.

Um dia, porém, o derradeiro dia chegou. Chegou junto com a brisa suave, com o sol morno e ofuscado. E Antoine soube que era o dia derradeiro. O dia em que perderia a sabida vã batalha. O dia em que ganharia a si mesmo? O dia que talvez trouxesse mais dias...

Ao longe estava Camila, apesar da distância, podia ver que estava sorrindo, com seus cabelos desalinhados e as unhas roídas, porém bonitas.

Túlio também estava longe...muito longe...não podia ver suas feições nitidamente, mas sabia que era ele. Ambos estavam longe de Antoine, mas a uma pequena distância um do outro. Antoine estava só...a uma grande distância...a observá-los. O que devia ser feito? O que deveria ser feito? Amá-los. Des-amá-los... bem àqueles que o arrebataram? Deveria retornar à sua inocuidade? Sim ou não? Perguntava-se desesperadamente.

Nenhuma atitude planejada tomou, e um acordo tácito entre ele e “os outros dois” se firmou. Nunca mais saíram os três juntos – agora eram “os dois” e Antoine. Nada conversaram, só o abismo se insinuou no dia derradeiro, e aí se instalou, para nunca mais se estreitar.

Acordando das doces lembranças, Antoine chorou. Enxugou as lágrimas e decidiu-se por esperar.....dando continuidade à grande espera.



1995-2000, 2004

28 fevereiro 2010

Antoine (continuação...)

Nada para ele era mais fantástico do que viver. Mantinha uma ânsia de viver tanto quanto de morrer, e vivia, vivia, vivia cada segundo, cada átimo de segundo do dia, até esgotar a sua última gota de vontade, e então dormia. O merecido sono dos batalhadores que combatem o vão combate. Sempre.

Com Túlio e Camila, Antoine ia vivendo seus dias de ir e vir. Secretamente ele esperava e talvez ansiasse pelo dia derradeiro. Enquanto este não chegava, ele ansiava-se até o ar faltar por vencer a batalha por ele sabida vã. Durante esta batalha, a cegueira oriunda da expectativa da vitória certa era sorvida por Antoine como o mais nutritivo dos compostos vitamínicos por ele já tomados - o que fazia com que levasse uma vida épica.

Ele era todo épico. Desde seus pensamentos até as roupas que usava - em tudo havia um tom épico que vociferava a vã batalha travada a cada ocaso e nascer do sol. Vez ou outra, tomado pela própria consciência, Antoine amargava-se e se perguntava a crucial questão que perseguia a ele e a muitas e muitas e muitas pessoas:

Quem era Antoine, afinal?

Talvez Antoine fosse um pássaro grande e pesado, cujas penas eram lisas e escorregadias. Desde a época em que tomara consciência da própria existência, Antoine quis ser livre. E livre então, ele era. Sempre o fora e sempre o seria. Absoluta e totalmente livre.

Antoine era um pássaro. E, uma vez que teoricamente todos os pássaros são livres, ele era também livre. Antoine era então, um pássaro grande e pesado, cujas penas eram lisas e escorregadias.

O que mais o atordoava era o fato de não ser aquilo que realmente achava que era. O que ele era na verdade e não na sua realidade, o insatisfazia dolorosamente. Como acreditar naquela figura transparente, esvoaçante e inócua, cuja realidade só era confirmada pelos olhos alheios? (continua...)

21 fevereiro 2010

Antoine (continuação...)

O domingo continuava, na sua meia-luz... quase um escuro total. Os domingos da sua vida eram então assim: olhar as ruas da janela do apartamento e lembrar-se...Daqueles dias cuja atmosfera circundante quase beirava a glória e Antoine se sentia quase feliz: os três saíam sempre juntos - Antoine, Camila e Túlio. Eram os dois, os melhores amigos de Antoine. Nada os separava. Onde um estava, os outros dois estavam também. Os três dividiam tudo, e um completava o outro. Antoine se sentia feliz na companhia dos dois. Na companhia deles, Antoine se libertava do seu próprio universo, o que, pelo menos momentaneamente, o aliviava.

Camila e Túlio eram lindos, diáfanos e inocentes. Na companhia dos dois, viver era uma brincadeira. Viver era realmente viver. Junto deles Antoine vivia. E esquecia que viver era um grande esforço do qual queria se livrar. Esquecia-se do tamanho da angústia que sentia, e que os objetos da vida eram-lhe complicados demais, e que a vastidão do tempo era-lhe sufocante. O amor que sentia pelos dois era imenso, maior , maior...cada vez maior.

Amá-los era uma benção. Uma coroação. Um estar e um ser. Um mergulho na imensidão de ser. Sendo. Antes de conhecê-los, Antoine não sabia o que era viver. Aprendeu com os dois. E se orgulhava muitíssimo disso. Viver passou a ser seu lema. Até às últimas conseqüências - viver, viver. E ser...

O pequeno Antoine, cegado pela vida, e submerso na sua ânsia de viver, era um pequeno tolo, cujos pés se mantinham firmes no chão, mas os olhos enxergavam o impossível.

Antoine nada possuía do homem adâmico (1), o que por sua vez, não significava que o tinha transcendido - atingindo o objetivo máximo da criação. Não, ele ainda não havia sequer atingido o patamar do homem adâmico, o que talvez o isentasse de culpas. Camila e Túlio também não eram culpados, pois possuíam um forte álibi que os inocentava, porém ambos encontravam-se um nível acima de Antoine.

Antoine se considerava puro de atos e sórdido de pensamentos e, por Camila e Túlio iniciou uma espécie de luta. Uma luta vã, semelhante à todas as outras das quais havia participado. Porém, desta vez a batalha estava ganha, Antoine afirmava mudamente para si mesmo.     (continua...)

17 fevereiro 2010

Do Fundo do Baú: ANTOINE

Mais um texto vindo lá do fundo do baú! Iniciado em 1995, escrito mais um pouco em 2000, e o finalzinho em 2004, este conto foi e é muito significativo para mim; mas, não sei se para o bem ou para mal (acredito que para o bem...), seu significado congelou-se no tempo.  Mesmo assim, posso dizer que ainda gosto dele. Como ele é um pouco extenso para o espaço do blog, será postado em duas ou mais vezes.


Alardeando a febre sutil, a engrenagem mítica do desejo e do saber, Antoine chorou.


Antoine comportava-se de maneiras diferentes em lugares e com pessoas diferentes. Poderia mudar de sexo, que mesmo assim, continuaria sendo a mesma pessoa. Da janela aberta de seu apartamento, que ficava em um dos últimos andares, ele, com a cabeça debruçada sobre os braços, olhava.

Era uma tarde acinzentada e úmida, cujo ar parecia embolorado e pesado, imanando pelo ambiente uma atmosfera hermética, sem perspectivas de desfazer-se tão cedo. Antoine imaginava que o dia seguinte seria brilhante de sol e, pensando nisso, esperava. Sua vida sempre foi uma grande espera. Não sabia viver sem esperar. Por isso, odiava a esperança - a cálida e amarga esperança dos dias vindouros. Por outro lado, a promissora bonança subsequente à tempestade, e os transparentes raios solares a se infiltrarem por entre as espessas nuvens que desfaziam-se uma à uma no desanuviamento de um dia nublado, eram-lhe sopros de vida, pulsações vitais, sem as quais não saberia viver.

Quem era Antoine afinal? A pesada imagem-matéria refletida no espelho não correspondia à fluidez e leveza da sua consciência. Um processo criativo o criara, e agora não sabia o que fazer com ele. Ele era um personagem de uma história sem rumo. O seu destino não existia e estava selado talvez, num envelope vazio. Quem era Antoine? Afinal ?

Para se livrar da realidade circundante, Antoine tomava inúmeros tranqüilizantes, ou então, quando tinha disposição, embriagava-se com litros e litros de leituras - as de sua mais seleta preferência, cuja arbitrariedade satisfazia momentaneamente a pulsante sede que lhe aflorava nessas ocasiões.

A arbitrariedade era a palavra-chave da sua tumultuada vida. Amava tudo que era arbitrário, não se importando com as conseqüências desencadeadas - fossem estas boas ou más. Antoine desejava ardentemente que o mundo seguisse o arbitrário caminho que estava seguindo, para não se sentir tão só na caminhada. Porém, nesse caminho que fazia, poucos eram os atos, e muitas a sensações.

Gritos de crianças vindos do andar superior despertaram-no, e a imagem da cidade lá embaixo turvou-se um pouco. Olhou o relógio na parede: 15:30 de um domingo cinzento. Logo seriam 18:00. As horas passavam rápido demais, angustiando Antoine.

A vida de Antoine era muito dura. Ele próprio havia optado por essa vida dura e pesada. E ele sabia disso mais do que ninguém. E como sabia. As dificuldades da sua vida haviam sido pré-estabelecidas antes dele nascer ou, segundo outra teoria, durante a sua infância. Ou durante seu nascimento. Ou durante o forjamento da sua personalidade, ou durante...ou antes...ou depois...     (continua...)

01 janeiro 2010

Primeira postagem de 2010: O FIM DO MUNDO

Nada mais propício que o início de um novo ano para pensarmos no fim do mundo! Tema tão constante hoje como sempre, acredito eu. Assim, posto aqui um mini-conto, "fresquinho" ou "quentinho", com o tema:

O FIM DO MUNDO

A semi-consciência, aquele estado entre a consciência e o sono, é um dos momentos mais profícuos e ricos de idéias, aonde a clareza brota como nunca! A coragem, as decisões, as resoluções de problemas, os grandes insights...tudo surge com uma nitidez impressionante! Num desses abençoados instantes, conheci Ariovaldo, e o fim da sua história:

Lá estava ele, abotoando o roupão brilhante e surrado, e pensando que o fim do mundo talvez nao fosse tão ruim assim.... Partir sozinho, aí sim, deveria ser triste, mas partirem todos juntos...saber que ninguém mais ficaria aqui, não era má idéia...era até confortador, fácil de aceitar...em comparação com a morte comum.

Claro, havia muito o que fazer ainda por aqui, lugares para conhecer, conhecimentos a aprender, emoções que talvez ainda não tivesse vivido, muito a ler e escrever...mas, do alto dos seus 53 anos, e diante da iminência certa do fim do mundo, parecia que tudo isso perdia a importância e, o mais estranho, ele não se lamentava...parecia que enfim chegava o dia que ele tanto esperara para finalmente descansar...cansado de um vida de emoções...!

As mídias do mundo afora sempre anunciaram previsões do fim do mundo, mas não como agora. Eram previsões malucas, teorias fantásticas – a maioria com Nostradamus no meio. Agora era completamente diferente! Cientificamente certo, todos estavam cientes, o mundo realmente ia acabar! O mundo estava desesperado ante seu fim. Ariovaldo no entanto, estranhamente, não conseguia desesperar-se, estava indiferente ante o inevitável...se era para ir para o fim, vamos juntos, todos, e pronto...

Não tinha vontade de matar-se antes do final, como muitos estavam fazendo, simplesmente queria ver tudo acabar, sumir, o planeta todo...tomando calmamente seu whisky, fumando um último cigarro, e lendo o jornal do dia...que chegou inteirinho, no horário de sempre, como se o mundo não estivesse prestes a acabar daqui a pouco...


Dez.2009