19 outubro 2011

Natimorto


Assisti ontem ao filme Natimorto – adaptação do livro de mesmo nome de Lourenço Mutarelli  e  dirigido por  Paulo Machline.

Saí do cinema ontem a noite e o filme ainda está na minha cabeça.  Que ótimo, vocês devem estar pensando, isso quer dizer que o filme é bom!  Não sei, sinceramente. Não é ruim, de modo algum e, se não sai da minha cabeça, alguma coisa é, ou tem!

O filme é muito depressivo, mas as idéias do personagem de Mutarelli (ele, além de autor da obra também atua ao lado de Simone Spoladore) são fantásticas! Realmente dariam um livro, como a própria personagem de Simone diz várias vezes.

O visual retrô – desde as roupas até a ambientação (um hotel decadente) – nos remete aos anos sessenta - o que mais angústia e claustrofobia provoca.

Voltando às idéias do personagem ao longo do filme, a história  do seu primo que, quando criança  cai num poço e se depara com sua própria imagem na água – que ele julga ser a do monstro do poço, fazendo com que  conclua que o monstro se assemelha a todos nós, dá uma noção do que vêm por aí.

Obcecado por tarot, ele faz a correspondência das fotos  de advertência ao fumo existente nos maços de cigarro com as figuras do baralho, lendo o futuro em cada maço que compra – o seu e o da mulher com quem divide o quarto de hotel. Inicialmente achei bem interessante a idéia, depois, porém, comecei a achá-la irritante e cansativa, assim como  sua profunda imersão no cigarro e no café, além da “deprê” total.

O filme é uma ode à escatologia, à fuga da vida, à negação do viver, à volta ao útero da mãe protetora, daí o natimorto do título – o homem,  ao ver num dos maços de cigarro a foto de um bebê natimorto diz que este é aquele que veio da não-existência e para ela voltou sem ser contaminado pela vida, símbolo maior então, da pureza e também do seus anseios,  já que  ele próprio lamenta, ao que tudo indica, não ter sido um natimorto.

Exageros à parte, esse filme derruba anos de terapia à favor do bem-estar na vida. Ainda bem que foi só um filme.


19/10/2011

03 junho 2011

O vazio do poeta


Sou um poeta vazio
preenchido por tantos,
que sou aquele
que não sabe mais quem é!

Roubo de um, os sentimentos,
de outro, os maneirismos
com que escrevo estas linhas.

Sou homem, sou mulher,
e tantos outros gêneros
que ainda venham a construir.
Minha personalidade perdeu-se
nas páginas dos livros
e no sonho da poesia.

Sou óbvio, à medida que sou poeta.

Preencho-me de você, e de você,
e me canso de todos!
Fujo de vocês, e deles também.

Só não consigo fugir daquele!
Aquele que não é.
E ele sou eu.

Preencho-me de mim,
e assim, sou poeta.


Set./2010

28 abril 2011

Mudança de Brincos

Entre tantos afazeres, abrir a gaveta do criado mudo para procurar um par de brincos era tarefa que quase nunca era realizada, o que fazia com que os brincos de sua orelha permanecessem sempre os mesmos durante meses.

Sempre ocupada, com pressa ou cansada, organizava sua vida de modo a não precisar usar o conteúdo das gavetas dos móveis, principalmente do criado-mudo. Abri-las sempre a atrasaria para algum compromisso.

A noite, quando já deitada para o merecido descanso, após um dia muito atarefado, às vezes vinha-lhe a lembrança da gaveta do criado-mudo: basta que eu estique o braço...vire um pouco o corpo, e depois levante a cabeça.... . Mas logo desistia da idéia, já estava sonolenta, e dormindo, não precisaria de nada do que havia lá dentro. Mas o que havia lá mesmo? Será que os brincos prateado e verde estariam lá? Preciso abrir essas gavetas qualquer hora...

E os dias passavam. O criado-mudo lá permanecia, ao lado da cama, parado, quieto e ressentido dos segredos que pensava guardar não serem do interesse de ninguém. Nem ao menos de uma ligeira espiada era digno. Injusta sina para um móvel tão famoso.

Mas eis que um dia, algo inusitado aconteceu. A mulher não parecia ter pressa. Acordou preguiçosamente, e, sob o olhar curioso do criado-mudo, colocou uma música, guardou as roupas jogadas sobre a cadeira, separou as limpas das que precisavam ser lavadas, arrumou a cama meticulosamente e guardou os sapatos espalhados pelo chão na sapateira. Ao mexer nos colares misturados sobre o tampo desta, o olhar da mulher virou-se em direção ao criado-mudo, fazendo com que o ressentido e oco coração do resignado móvel pulasse dentro de suas gavetas. Ele tentou controlar-se, mas a emoção de ser finalmente notado era muito forte. Até hoje não ficou sabendo se ela percebeu que seus puxadores tremiam, que seu fundo balançava e que seus trilhos suavam! Mas manteve-se firme, altivo, parado e mudo, como todo criado-mudo de respeito deve ser.

A mulher aproximou-se dele, abriu sua primeira gaveta. Procurava algo. Remexeu em vários objetos e voltou a fechá-la. O coração do pobrezinho, que durante esse ato quase parou de tanta emoção, iniciava um suspiro aliviado quando ela, aquela que outrora o ignorara tão displicentemente, resolve repentina e inusitadamente, abrir a sua segunda gaveta.

Demorando-se mais nessa, pegou objetos, abriu saquinhos de tecido, revirou outros e terminou por retirar de uma caixinha de veludo vermelho, um par de brincos prateados com pedras verdes. Depois da reviravolta executada no interior de sua segunda gaveta, podemos imaginar o estado físico e emocional do nosso amigo criado-mudo!

Estava em frangalhos, mas saciado! A emoção havia sido tanta que ele, que já não era mais tão jovem, resolveu aposentar-se, pois não tinha mais idade para tantas aventuras interiores, apesar de tê-las desejado ansiosamente durante todo o período em que havia sido relegado ao desprezo.

E assim, nosso imóvel amigo móvel aposentou-se, feliz e realizado, da sua longa e respeitável existência como criado-mudo.
….....
.........
.........

Hã? Você não sabe como um criado-mudo se aposenta?!? Oras, ele simplesmente permanece... mudo... ao lado da cama.


Dez.10/Fev.11


Pode também ser lido diretamente no site da CBJE, clicando na capinha no lado direito da página, na Antologia Crônicas da Cidade.

22 abril 2011

Tua Fotografia


Beijei em meus sonhos
tua boca entreaberta.
Quanto do teu hálito respirei,
misturando-o à salinidade do mar


A aspereza da areia sob meus pés
descalços,
perseguindo tuas pegadas delicadas,
incentivam meus passos
a buscá-la além da imagem capturada.


Obtê-la do vasto azul do horizonte
do branco espumoso das ondas
do perolado quente da areia, e
encontrá-la pelo brilho sem fim do teu olhar


Teus cabelos negros de sereia, emaranhados
pelos ventos de sal
guiam-me por trilha de audaz vida,
esculpida pelo teu andar, disseminada pela brisa,
traduzida pelo amor,
com destino único a ti.



19/04/11

17 março 2011

Atavismo Poético

Um fato que tenho percebido acontecer-me algumas vezes (não muitas, mas algumas) ao escrever, especificamente poesia, é a sensação de que o que escrevi já foi escrito.

Escrevo. Leio, releio, re-escrevo. Releio. E continua a sensação de que alguém já escreveu a composição que acabei de derramar no papel!

Porém, de tanto reler o que escrevi, muitas vezes acho que sensação vem-me justamente disso. Em outros momentos desconfio que não, e sim, de que realmente outra pessoa já escreveu aquilo.

Será um atavismo poético?

Será a auto-psicografia inerente ao gene poético?

Ou serão as duas suposições juntas, e ainda somadas à longa existência humana neste planeta - exacerbada  pela tecnologia da comunicação e informação, fazendo com que recebamos tantas informações das mais variadas mídias que assimilamo-las e incorporamo-las em nossas mentes como se fossem nossas automaticamente? Estará se transformando a mente humana numa imensa e coletiva mente?

Inconclusivamente, termino por hora esta minha inquietação que já há algum tempo desassossega-me "assim, assim", esperando que novas informações sobre o tema surjam atavicamente, psicograficamente, por e-mail, torpedo, bluetooth ou ....sabe-se lá de que modo!

17 janeiro 2011

Memórias Marilienses de "Aventuras": festa de casamento

O ano era 1993. Quarto ano de faculdade. As aventuras continuavam.

Um ano antes, eu e umas amigas-colegas de curso adquirimos o hábito, ou seja lá como isso possa ser denominado, de frequentarmos festas de casamentos sem sermos convidadas – ou seja - “penetrávamos” em festas alheias, especificamente de casamentos, do modo vulgarmente conhecido como “bicão”.

Nesse ano de 1993, conseguimos “descolar” uma festa muitíssimo interessante e promissora*.

Dada a divulgação boca à boca do nosso hábito ou hobby entre colegas, professores e pessoas com quem morávamos, passamos a obter informações sobre casamentos, as quais nos eram fornecidas sem termos de pedi-las. Talvez motivadas por um instinto de aventura enrustido, essas pessoas viam em nós, a concretização de seus sonhos aventurescos, os quais realizavam por nosso intermédio.

Bem, divagações filosóficas à parte, obtivemos informações sobre um determinado casamento aparentemente promissor por meio da dona do pensionato em que eu morava, a qual por sua vez, a obteve da dama de companhia de uma amiga.

Pois bem, eu e mais três amigas – duas das quais habitués da nossa prática do “bicão”, e a outra, estreante curiosa  - dirigimo-nos arrumadas e perfumadas, de ônibus, da Vila Altaneira (nosso quartel-general e local aonde moravam as duas primeiras) até a igreja Santo Antônio, localizada no bairro Alto Cafezal.

Lá chegando, começamos a assistir ao casamento. Como a cerimônia estava bastante demorada, resolvemos sair e caminhar até o local da recepção, que era bastante longe, pelo que me lembro. E, se não me falha a memória, a festa seria num salão pertencente aos bancários, lá para as "bandas" do final da av. Sampaio Vidal, sentido terminal rodoviário.

E lá fomos nós quatro a pé, rua afora. Após uns poucos quarteirões, uma das moças já não aguentava de dor nos pés devido a um sapato apertado. Como o caminho era longo, decidimos posicionar nossos polegares em prol da obtenção de uma providencial carona.

Alguns pouco minutos depois, uma perua kombi nos oferecia a carona. Entramos as quatro e, em meio a caixas com restos de verduras, e nenhum banco “sentável” à vista, nos acomodamos da melhor maneira possível, não sem antes informar ao motorista o nosso destino.

Chegando ao local da festa – que ainda se encontrava fechado – aproveitamos para discutirmos na calçada, a importante questão sobre qual desculpa usaríamos caso nos questionassem sobre quem éramos. Entre várias idéias, das quais infelizmente não me recordo, acabamos por escolher a mais sensata: eu diria que era sobrinha da Maria, que era a dama de companhia da amiga da dona do pensionato em que eu morava, pois ela estaria trabalhando na cozinha da festa! Achamos a idéia magnífica, e assim ficou decidido.
 
Aberto o salão, fomos as primeiras a entrar. Sentamo-nos numa estratégica mesa perto da cozinha. Os convidados foram chegando e se acomodando. A festa ia transcorrendo tranquilamente. Estávamos sendo bem servidas e, ao que tudo indicava, não havíamos suscitado suspeitas.

Quando demoravam para nos servir alguns dos deliciosos salgadinhos e demais iguarias, uma de nós se levantava e ia até a cozinha dar uma “reclamadinha” sobre a demora em sermos servidas. No mais, estávamos bastante satisfeitas com o transcorrer dos acontecimentos.

Algum tempo depois os noivos iniciam sua peregrinação pelas mesas dos convidados. O fato – já esperado – nos colocou em preocupante estado de alerta, que no entanto, já era nosso velho conhecido.

Sem escapatória, nos defrontamos com o momento fatídico: noivo e noiva, sorridentes e simpáticos chegam, sem qualquer desvio no percurso, à nossa mesa. Levantamo-nos as quatro – também sorridentes, e os cumprimentamos.

O noivo, simpaticíssimo, nos faz a crucial pergunta, enquanto transcorre rapidamente o olhar por nós: “Vocês são...”. Eu, incumbida de ser a “sobrinha da Maria”, conforme o combinado, seria a reveladora do fato: “Bom...", disse eu, trazendo a mão aberta em direção ao peito, "...meu nome é Lí...”.

Acreditem se quiserem, caros leitores, mas foi assim mesmo que aconteceu, conforme narro logo mais à frente, sem floreios, sem tirar nem por, sem aumentar um ponto sequer: como que por magia, encanto, ou seja lá o que for, fui interrompida na revelação de nossa identidade por uma voz que pronunciou: “Sidney!” Com o acento tônico no ney. Era o nome do noivo.

Um amigo do Sidney, cumprimentando-o efusivamente, fez com que o casal esquecesse completamente de nós, voltando sua atenção totalmente para ele.

Alívio nosso. E quem sabe, deles também!

Salvas pelo gongo e já bastante alimentadas, esperamos um pouco até que os três se afastassem e, discretamente, nos retiramos do salão.

Calçada ganha, às risadas nos demos – e aos comentários sobre nosso desempenho, sobre a sorte que tivemos e o apuro que passamos, curiosidade sobre o que a novata sentiu, sobre nossa amizade e, entre outras coisas, sobre esse maluco e ousado hobby que compartilhávamos e que nos unia.

E assim, felizes, fomos caminhando até o terminal urbano de ônibus para retornarmos à Vila Altaneira.


* Leia-se comida com boa qualidade e quantidade, e facilidade de penetração

Jan./2011