Entre tantos afazeres, abrir a gaveta do criado mudo para procurar um par de brincos era tarefa que quase nunca era realizada, o que fazia com que os brincos de sua orelha permanecessem sempre os mesmos durante meses.
Sempre ocupada, com pressa ou cansada, organizava sua vida de modo a não precisar usar o conteúdo das gavetas dos móveis, principalmente do criado-mudo. Abri-las sempre a atrasaria para algum compromisso.
A noite, quando já deitada para o merecido descanso, após um dia muito atarefado, às vezes vinha-lhe a lembrança da gaveta do criado-mudo: basta que eu estique o braço...vire um pouco o corpo, e depois levante a cabeça.... . Mas logo desistia da idéia, já estava sonolenta, e dormindo, não precisaria de nada do que havia lá dentro. Mas o que havia lá mesmo? Será que os brincos prateado e verde estariam lá? Preciso abrir essas gavetas qualquer hora...
E os dias passavam. O criado-mudo lá permanecia, ao lado da cama, parado, quieto e ressentido dos segredos que pensava guardar não serem do interesse de ninguém. Nem ao menos de uma ligeira espiada era digno. Injusta sina para um móvel tão famoso.
Mas eis que um dia, algo inusitado aconteceu. A mulher não parecia ter pressa. Acordou preguiçosamente, e, sob o olhar curioso do criado-mudo, colocou uma música, guardou as roupas jogadas sobre a cadeira, separou as limpas das que precisavam ser lavadas, arrumou a cama meticulosamente e guardou os sapatos espalhados pelo chão na sapateira. Ao mexer nos colares misturados sobre o tampo desta, o olhar da mulher virou-se em direção ao criado-mudo, fazendo com que o ressentido e oco coração do resignado móvel pulasse dentro de suas gavetas. Ele tentou controlar-se, mas a emoção de ser finalmente notado era muito forte. Até hoje não ficou sabendo se ela percebeu que seus puxadores tremiam, que seu fundo balançava e que seus trilhos suavam! Mas manteve-se firme, altivo, parado e mudo, como todo criado-mudo de respeito deve ser.
A mulher aproximou-se dele, abriu sua primeira gaveta. Procurava algo. Remexeu em vários objetos e voltou a fechá-la. O coração do pobrezinho, que durante esse ato quase parou de tanta emoção, iniciava um suspiro aliviado quando ela, aquela que outrora o ignorara tão displicentemente, resolve repentina e inusitadamente, abrir a sua segunda gaveta.
Demorando-se mais nessa, pegou objetos, abriu saquinhos de tecido, revirou outros e terminou por retirar de uma caixinha de veludo vermelho, um par de brincos prateados com pedras verdes. Depois da reviravolta executada no interior de sua segunda gaveta, podemos imaginar o estado físico e emocional do nosso amigo criado-mudo!
Estava em frangalhos, mas saciado! A emoção havia sido tanta que ele, que já não era mais tão jovem, resolveu aposentar-se, pois não tinha mais idade para tantas aventuras interiores, apesar de tê-las desejado ansiosamente durante todo o período em que havia sido relegado ao desprezo.
E assim, nosso imóvel amigo móvel aposentou-se, feliz e realizado, da sua longa e respeitável existência como criado-mudo.
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Hã? Você não sabe como um criado-mudo se aposenta?!? Oras, ele simplesmente permanece... mudo... ao lado da cama.
Dez.10/Fev.11
Pode também ser lido diretamente no site da CBJE, clicando na capinha no lado direito da página, na Antologia Crônicas da Cidade.
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