17 fevereiro 2010

Do Fundo do Baú: ANTOINE

Mais um texto vindo lá do fundo do baú! Iniciado em 1995, escrito mais um pouco em 2000, e o finalzinho em 2004, este conto foi e é muito significativo para mim; mas, não sei se para o bem ou para mal (acredito que para o bem...), seu significado congelou-se no tempo.  Mesmo assim, posso dizer que ainda gosto dele. Como ele é um pouco extenso para o espaço do blog, será postado em duas ou mais vezes.


Alardeando a febre sutil, a engrenagem mítica do desejo e do saber, Antoine chorou.


Antoine comportava-se de maneiras diferentes em lugares e com pessoas diferentes. Poderia mudar de sexo, que mesmo assim, continuaria sendo a mesma pessoa. Da janela aberta de seu apartamento, que ficava em um dos últimos andares, ele, com a cabeça debruçada sobre os braços, olhava.

Era uma tarde acinzentada e úmida, cujo ar parecia embolorado e pesado, imanando pelo ambiente uma atmosfera hermética, sem perspectivas de desfazer-se tão cedo. Antoine imaginava que o dia seguinte seria brilhante de sol e, pensando nisso, esperava. Sua vida sempre foi uma grande espera. Não sabia viver sem esperar. Por isso, odiava a esperança - a cálida e amarga esperança dos dias vindouros. Por outro lado, a promissora bonança subsequente à tempestade, e os transparentes raios solares a se infiltrarem por entre as espessas nuvens que desfaziam-se uma à uma no desanuviamento de um dia nublado, eram-lhe sopros de vida, pulsações vitais, sem as quais não saberia viver.

Quem era Antoine afinal? A pesada imagem-matéria refletida no espelho não correspondia à fluidez e leveza da sua consciência. Um processo criativo o criara, e agora não sabia o que fazer com ele. Ele era um personagem de uma história sem rumo. O seu destino não existia e estava selado talvez, num envelope vazio. Quem era Antoine? Afinal ?

Para se livrar da realidade circundante, Antoine tomava inúmeros tranqüilizantes, ou então, quando tinha disposição, embriagava-se com litros e litros de leituras - as de sua mais seleta preferência, cuja arbitrariedade satisfazia momentaneamente a pulsante sede que lhe aflorava nessas ocasiões.

A arbitrariedade era a palavra-chave da sua tumultuada vida. Amava tudo que era arbitrário, não se importando com as conseqüências desencadeadas - fossem estas boas ou más. Antoine desejava ardentemente que o mundo seguisse o arbitrário caminho que estava seguindo, para não se sentir tão só na caminhada. Porém, nesse caminho que fazia, poucos eram os atos, e muitas a sensações.

Gritos de crianças vindos do andar superior despertaram-no, e a imagem da cidade lá embaixo turvou-se um pouco. Olhou o relógio na parede: 15:30 de um domingo cinzento. Logo seriam 18:00. As horas passavam rápido demais, angustiando Antoine.

A vida de Antoine era muito dura. Ele próprio havia optado por essa vida dura e pesada. E ele sabia disso mais do que ninguém. E como sabia. As dificuldades da sua vida haviam sido pré-estabelecidas antes dele nascer ou, segundo outra teoria, durante a sua infância. Ou durante seu nascimento. Ou durante o forjamento da sua personalidade, ou durante...ou antes...ou depois...     (continua...)

Nenhum comentário: