28 fevereiro 2010

Antoine (continuação...)

Nada para ele era mais fantástico do que viver. Mantinha uma ânsia de viver tanto quanto de morrer, e vivia, vivia, vivia cada segundo, cada átimo de segundo do dia, até esgotar a sua última gota de vontade, e então dormia. O merecido sono dos batalhadores que combatem o vão combate. Sempre.

Com Túlio e Camila, Antoine ia vivendo seus dias de ir e vir. Secretamente ele esperava e talvez ansiasse pelo dia derradeiro. Enquanto este não chegava, ele ansiava-se até o ar faltar por vencer a batalha por ele sabida vã. Durante esta batalha, a cegueira oriunda da expectativa da vitória certa era sorvida por Antoine como o mais nutritivo dos compostos vitamínicos por ele já tomados - o que fazia com que levasse uma vida épica.

Ele era todo épico. Desde seus pensamentos até as roupas que usava - em tudo havia um tom épico que vociferava a vã batalha travada a cada ocaso e nascer do sol. Vez ou outra, tomado pela própria consciência, Antoine amargava-se e se perguntava a crucial questão que perseguia a ele e a muitas e muitas e muitas pessoas:

Quem era Antoine, afinal?

Talvez Antoine fosse um pássaro grande e pesado, cujas penas eram lisas e escorregadias. Desde a época em que tomara consciência da própria existência, Antoine quis ser livre. E livre então, ele era. Sempre o fora e sempre o seria. Absoluta e totalmente livre.

Antoine era um pássaro. E, uma vez que teoricamente todos os pássaros são livres, ele era também livre. Antoine era então, um pássaro grande e pesado, cujas penas eram lisas e escorregadias.

O que mais o atordoava era o fato de não ser aquilo que realmente achava que era. O que ele era na verdade e não na sua realidade, o insatisfazia dolorosamente. Como acreditar naquela figura transparente, esvoaçante e inócua, cuja realidade só era confirmada pelos olhos alheios? (continua...)

21 fevereiro 2010

Antoine (continuação...)

O domingo continuava, na sua meia-luz... quase um escuro total. Os domingos da sua vida eram então assim: olhar as ruas da janela do apartamento e lembrar-se...Daqueles dias cuja atmosfera circundante quase beirava a glória e Antoine se sentia quase feliz: os três saíam sempre juntos - Antoine, Camila e Túlio. Eram os dois, os melhores amigos de Antoine. Nada os separava. Onde um estava, os outros dois estavam também. Os três dividiam tudo, e um completava o outro. Antoine se sentia feliz na companhia dos dois. Na companhia deles, Antoine se libertava do seu próprio universo, o que, pelo menos momentaneamente, o aliviava.

Camila e Túlio eram lindos, diáfanos e inocentes. Na companhia dos dois, viver era uma brincadeira. Viver era realmente viver. Junto deles Antoine vivia. E esquecia que viver era um grande esforço do qual queria se livrar. Esquecia-se do tamanho da angústia que sentia, e que os objetos da vida eram-lhe complicados demais, e que a vastidão do tempo era-lhe sufocante. O amor que sentia pelos dois era imenso, maior , maior...cada vez maior.

Amá-los era uma benção. Uma coroação. Um estar e um ser. Um mergulho na imensidão de ser. Sendo. Antes de conhecê-los, Antoine não sabia o que era viver. Aprendeu com os dois. E se orgulhava muitíssimo disso. Viver passou a ser seu lema. Até às últimas conseqüências - viver, viver. E ser...

O pequeno Antoine, cegado pela vida, e submerso na sua ânsia de viver, era um pequeno tolo, cujos pés se mantinham firmes no chão, mas os olhos enxergavam o impossível.

Antoine nada possuía do homem adâmico (1), o que por sua vez, não significava que o tinha transcendido - atingindo o objetivo máximo da criação. Não, ele ainda não havia sequer atingido o patamar do homem adâmico, o que talvez o isentasse de culpas. Camila e Túlio também não eram culpados, pois possuíam um forte álibi que os inocentava, porém ambos encontravam-se um nível acima de Antoine.

Antoine se considerava puro de atos e sórdido de pensamentos e, por Camila e Túlio iniciou uma espécie de luta. Uma luta vã, semelhante à todas as outras das quais havia participado. Porém, desta vez a batalha estava ganha, Antoine afirmava mudamente para si mesmo.     (continua...)

17 fevereiro 2010

Do Fundo do Baú: ANTOINE

Mais um texto vindo lá do fundo do baú! Iniciado em 1995, escrito mais um pouco em 2000, e o finalzinho em 2004, este conto foi e é muito significativo para mim; mas, não sei se para o bem ou para mal (acredito que para o bem...), seu significado congelou-se no tempo.  Mesmo assim, posso dizer que ainda gosto dele. Como ele é um pouco extenso para o espaço do blog, será postado em duas ou mais vezes.


Alardeando a febre sutil, a engrenagem mítica do desejo e do saber, Antoine chorou.


Antoine comportava-se de maneiras diferentes em lugares e com pessoas diferentes. Poderia mudar de sexo, que mesmo assim, continuaria sendo a mesma pessoa. Da janela aberta de seu apartamento, que ficava em um dos últimos andares, ele, com a cabeça debruçada sobre os braços, olhava.

Era uma tarde acinzentada e úmida, cujo ar parecia embolorado e pesado, imanando pelo ambiente uma atmosfera hermética, sem perspectivas de desfazer-se tão cedo. Antoine imaginava que o dia seguinte seria brilhante de sol e, pensando nisso, esperava. Sua vida sempre foi uma grande espera. Não sabia viver sem esperar. Por isso, odiava a esperança - a cálida e amarga esperança dos dias vindouros. Por outro lado, a promissora bonança subsequente à tempestade, e os transparentes raios solares a se infiltrarem por entre as espessas nuvens que desfaziam-se uma à uma no desanuviamento de um dia nublado, eram-lhe sopros de vida, pulsações vitais, sem as quais não saberia viver.

Quem era Antoine afinal? A pesada imagem-matéria refletida no espelho não correspondia à fluidez e leveza da sua consciência. Um processo criativo o criara, e agora não sabia o que fazer com ele. Ele era um personagem de uma história sem rumo. O seu destino não existia e estava selado talvez, num envelope vazio. Quem era Antoine? Afinal ?

Para se livrar da realidade circundante, Antoine tomava inúmeros tranqüilizantes, ou então, quando tinha disposição, embriagava-se com litros e litros de leituras - as de sua mais seleta preferência, cuja arbitrariedade satisfazia momentaneamente a pulsante sede que lhe aflorava nessas ocasiões.

A arbitrariedade era a palavra-chave da sua tumultuada vida. Amava tudo que era arbitrário, não se importando com as conseqüências desencadeadas - fossem estas boas ou más. Antoine desejava ardentemente que o mundo seguisse o arbitrário caminho que estava seguindo, para não se sentir tão só na caminhada. Porém, nesse caminho que fazia, poucos eram os atos, e muitas a sensações.

Gritos de crianças vindos do andar superior despertaram-no, e a imagem da cidade lá embaixo turvou-se um pouco. Olhou o relógio na parede: 15:30 de um domingo cinzento. Logo seriam 18:00. As horas passavam rápido demais, angustiando Antoine.

A vida de Antoine era muito dura. Ele próprio havia optado por essa vida dura e pesada. E ele sabia disso mais do que ninguém. E como sabia. As dificuldades da sua vida haviam sido pré-estabelecidas antes dele nascer ou, segundo outra teoria, durante a sua infância. Ou durante seu nascimento. Ou durante o forjamento da sua personalidade, ou durante...ou antes...ou depois...     (continua...)